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Palavras de Areia ®

Partilha de sentires, emoções, aferições, estados de alma e coisas banais. Pequenas histórias de ontem, de hoje e que se sonham para o amanhã. Poemas meus e desabafos de amor e de vida.

Palavras de Areia ®

Partilha de sentires, emoções, aferições, estados de alma e coisas banais. Pequenas histórias de ontem, de hoje e que se sonham para o amanhã. Poemas meus e desabafos de amor e de vida.

31.01.21

Conto d'Amor

As últimas badaladas


Maresia

A igreja anunciava as findas horas da noite. Há 30 anos que assim era. As badaladas a soarem como a voz de uma mãe que anuncia que é tempo de levantar e hora do descanso. Em casa, os seus dias eram ritmados por elas, sem nunca perderem o fio ao tempo ou então, como acontecia nos domingos preguiçosos, despertavam para a demora nos lençóis, quando enroscados um no outro contavam em uníssono silêncio as batidas no ferro, para descobrirem que tardaram no ninho, no amor.

Artur e Inês, agora septuagenários, mantinham na sua união o seu espírito jovem, como se o sentimento que os une, os rejuvenescesse. Na sua cumplicidade e intimidade, alguém que os visse, encantar-se-ia pelo seu amor leve, brincalhão e sorridente. Comunicavam subtilmente e telepaticamente, conheciam-se inteiramente, num amor e afeto profundos, de respeito e de brilho no olhar.

A noite estava chuvosa e friorenta, pedindo o estalar da lenha, o lusco fusco das luzes e o conforto das mantas. Ainda ficaram mais de uma hora nesta quentura e paz. Inês já dormitara, no encosto quente do corpo de Artur, perdida nas páginas de um qualquer romance histórico, os seus preferidos para noites frias no sofá. Já Artur, preferia ficar sob o sussurro televisivo, agarrado aos noticiários ou escrevendo memórias, suas e do mundo.

Um beijo na testa, um abraço e um Vamos, amor! serviam de ponto para se recolherem ao quarto.

Noutros tempos, Inês refilaria um pouco, negaria a sua sonolência e pediria mais uma volta no sofá. Agora, mais obediente ao peso dos anos, espreguiçando-se e arrastando Artur pelo braço, ansiava aninhar-se no seu homem e no seu édredon. E ainda com aquele jeito de miúda que salta para a cama, repousava sobre uma pilha de almofadas e ficava sorridente a observar Artur, no seu ritual de meias voltas pelo quarto, que terminava com o seu tronco nu. E Inês, como adolescente apaixonada, ainda hoje, se encantava à imagem do seu marido. E enquanto Artur não se juntava a ela, disparava nos seus devaneios para o dia seguinte. Noutros tempos, predestinava para futuros mais longínquos, mas agora ousava apenas sonhar um dia de cada vez. E Artur sorria, e dentro do peito sentia-se tão encantado com estas falas diárias para adormecer da sua esposa, como esta com o seu tronco nu e desfile pelo quarto.

Foram sempre assim, encantados um pelo outro. Apaixonados e deslumbrados. Admiravam-se mutuamente e isso fizera com que se embrenhassem na cabeça e no coração um do outro. Conversavam durante horas, escutavam-se com quem mata a sede, amavam-se com fervor e o seu entendimento sempre fora naturalmente feliz.

Há mais de três décadas, fora essa a faísca. Os encontros matinais no café que foram desencadeando um Bom dia!, depois um Tudo bem? e, rapidamente, proporcionando pequenos momentos de conversa que, em poucos meses, os faziam perder uns longos minutos e saírem dali a correr para não chegarem atrasados. A eles, dois pontualíssimos funcionários, que agora viam aquela hora do dia arrepiada e sem tempo para devolverem tanto que tinham para dizer.

Corriam, sorriam disparatadamente e refilavam. Uns dias por saírem contrariados, outros pelo sentimento de borboletas no estômago, que os fazia sentirem-se irresponsáveis.

Os meses correram. Há mais de um ano que ambos acordavam com mais alento e com os despertadores atrasados meia hora para não correrem o risco de perder o encontro previsivelmente imprevisto.

Foi Artur que ganhou coragem. Passavam o tempo a sugerir um ao outro conhecer isto e aquilo, uma viagem aqui e ali, e numa dessas insinuações, em que Inês descrevia, com aquele seu ar de princesa da Disney, uma aldeia que visitara nos Açores, Artur, nem mais tarde nem mais cedo, disse-lhe:

- Está combinado! Vou comprar os bilhetes, marcar o hotel e, no último fim de semana do mês, vamos os dois visitar esse reino. Que dizes?

Inês abriu muito os olhos, toda ela sorriu e sem conter o entusiasmo, apenas a sua vontade de saltar, respondeu prontamente:

- Vamos, sim! E por mim, se quiseres, podemos ir já daqui a 15 dias. Tratas dos bilhetes e eu da estadia. Combinado? Quarto de casal, certo?

Coraram os dois, riram. Pela primeira vez, deram as mãos, deslisaram pelas cadeiras e beijaram-se. Queimaram por dentro. Não mais se largaram e não mais chegaram atrasados.

Adoravam a companhia um do outro, quer na tagarelice, quer nos silêncios. Tiravam prazer das pequenas coisas, dos pequenos gestos. E porque de corpo se veste a alma, a sua paixão e tesão um pelo outro eram bilhetes para verdadeiras viagens de montanha russa. Não tinham dúvidas do sentimento que os unia e na seriedade dos dias eram um para o outro uma alegria, um conforto, um mundo seu, que foram criando, revezando entre a paz que sentiam e o quão divertido era poderem despir-se um para o outro, a roupa e a conduta.

Artur baixou as luzes e enfiou-se na cama com a sua Inês. Abraçaram-se como sempre faziam, mesmo chateados. Raramente resistiam ao abraço, como se se reconfortassem do amuo e do remorso. Na verdade, compreendiam e aceitavam as suas diferenças, e claro que tinham os seus momentos de discórdia, mas estes eram fugazes e rapidamente se sentiam absurdos por se terem chateado ou recriminado um ao outro. O mais comum era estarem de acordo e unidos contra uma qualquer questão ou pessoa arrogante ou enfadada, que a ambos incomodava. Pareciam dois melhores amigos de escola, cúmplices, e se bem que bons alunos, traquinas e irreverentes nas sua ideias.

Artur suspirou e melancólico recordou as semanas que passaram, havia mais de 15 anos, em Itália. A noite chuvosa em Veneza, recompensada pela beleza vinhateira e medieval da Toscânia e claro, a Florença de Inês. Riram à lembrança, saudosos daqueles dias mágicos, mas certos da felicidade que foi terem tido a oportunidade de vivê-los juntos, inebriados pelo seu amor e por todos os recantos que descobriram naquela península cheia de História e histórias. Apertaram-se um ao outro. O Amo-te substituiu-se ao Boa noite e naquelas lembranças mergulharam no sono.

Foi Artur quem primeiro ouviu o toque do telemóvel, despertando e procurando o mesmo na sua mesinha de cabeceira. Inês acompanhou-o e com a voz rouca e preocupada, vendo o raio de luz pelas cortinas, mas sabendo que o sino ainda não tocara, disse:

- Ainda nem são oito horas! Quem será?

Artur atendeu. Soltou um Olá, filho, uns sins e uns nãos. Levou a sua mão à cabeça e de seguida procurou a mão de Inês e apertou-a com força, enquanto soltava um tímido agradecimento e um até já. Jogou o telemóvel para o tapete e rodando o seu corpo para a mulher, abraçou-a e como quem conta um segredo, disse-lhe ao ouvido que naquele momento, ambos teriam de ser fortes. E segurando-a, inundou-a de amor, contendo as suas lágrimas.

Era João, o seu filho, dizendo que os esperava dentro de uma hora no átrio do hospital, antes das suas primeiras consultas. Os resultados dos exames da mãe estavam consigo e revelavam o pior dos cenários.

Inês tremia, foi Artur que lhe escolheu a roupa e a ajudou a vestir. Em poucas palavras, tinha ficado entendido que partiam para uma batalha. Sentada aos pés da cama, de sorriso nervoso, disse-lhe que ia correr tudo bem. Ajoelhado à sua frente, cobriu-a de beijos e assegurou-lhe:

- Claro que sim! Estaremos juntos, como sempre.

Não haveria muito a fazer e João, com um doce pragmatismo, disse aos pais que restavam poucos meses de vida à mãe e que por isso eles escolhiam, ou enfiar a mãe num ciclo doloroso de tratamentos, que apenas lhe concederiam mais uns tantos meses de vida, ou pegarem em si e irem gozar da melhor forma este tempo. E num abraço terno, pediu à mãe para ser ela própria até ao fim e não desanimar agora.

O casal fixou o olhar um no outro, esticaram as mãos para as entrelaçarem e Inês disse ao filho:

- Meu amor, eu e o teu pai escolhemos ser felizes, quando nos escolhemos um ao outro. E já fomos tão felizes nestes longos anos. Sortudos por nos termos e nos amarmos assim. Tu sabes isso, melhor que ninguém. E também sabes que sonhos não me faltarão para concretizar neste tempo, mas o mais importante já realizei, tendo-vos na minha vida. Nós vamos aproveitar da melhor forma este tempo que me resta. Sem máquinas ou medicamentos que me impediriam de ter a força e o discernimento para encarar de capa e espada este fim. Estou grata por seres tu, aí nessa cadeira, a dar-me esta notícia difícil e a oportunidade de eu saber que é agora o momento de me despedir.

E sorrindo, com os olhos vincados pelas rugas e rasos de água, levantou-se, beijou longamente João, deu a mão ao seu homem e levou-o dali para fora, como quem foge, com uma pressa nervosa de vir respirar e olhar o céu.

Nessa noite, quebrados pelo choque, choraram os dois. Inês não sonhou o dia seguinte e Artur não sorriu ao som da sua voz.

Encaixaram-se em concha um no outro, renovaram em lágrimas as suas juras de amor e já muito depois da sua hora, com o céu chorando também e o vento bramindo lamentos, adormeceram com os rostos molhados, exaustos na sua dor.

O pequeno-almoço foi tomado em silêncio, com Inês a cortar nas torradas e a duplicar a toma de café. Hoje, podia.

- Vou fazer as malas. – disse-lhe Artur.

- Eu ajudo-te!

E assim foi. Esquecidos do motivo, e tal como sempre acontecia, encetaram os preparativos para a viagem com entusiasmo. Inês organizando as roupas, Artur os necessaires, enquanto discutiam as hipóteses de destino. Entrariam no carro e pela costa desceriam até ao sul, terminando o dia em Sagres. No dia seguinte, rumariam a Faro e daí galgariam Portugal pela mítica Nacional 2, fazendo os desvios que bem entendessem. Uma rota como fundo, mas desta vez, iriam ao sabor do vento. No telemóvel iriam programando as estadias.

Partiram com as malas cheias de tudo e de uma vontade imensa de serem felizes, só mais uns tempos, mas felizes. Não voltariam juntos à sua casa, mas às dez badaladas daquela manhã, uns meses e uns milhares de quilómetros pela frente eram uma eternidade.

Inês morreria na Régua, dali a dois meses.

Muitos diriam que se acharam perdidos por aí, prolongando as estadias, alongando-se nas horas a vislumbrarem as paisagens.

Tantas as nacionais que percorreram fora da rota e paravam constantemente, para que Inês não perdesse uma pedra de mundo, queria ver tudo uma vez, uma última vez. Ria e chorava. Esgotou as suas forças a subir colinas e castelos, a caminhar horas infindáveis, como se ao fazê-lo sem Destino, o enganasse.

Artur sorriu e chorou por dentro a cada instante, a cada brilho no olhar da esposa, percebendo que a estava a perder, que a sua flor definhava à sua frente, teimosa em não perder as suas pétalas e o seu perfume.

Amaram-se como sempre e para sempre.

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